Livros que sussurram memórias…

Recostada na cama, lendo o encanto de Jacinto pela Serra, pela Natureza, fecho os olhos e transporto-me para o meu sítio favorito. E nessa contemplação recorro a uma memória particular. Estamos sentados nos pedregulhos do lado sul do rio, aquecidos pelo sol forte que brilha e enregelados pela água fria que nos molha os pés descalços. Reflicto sobre esta memória: tu não estás sentado, estás deitado. Estás sobre o meu colo, estás repousado sobre mim. E dormes. Um sono leve, um sono breve. E há todo um encanto, toda uma paz, toda uma harmonia… Estamos tão bem, em tamanho silêncio e sintonia.
Fecho o livro sobre o colo e rebenta o açude que há em mim. O meu rosto é água que corre livre, por fim tão livre!… E essa água leva pela frente tudo quanto encontra esvaziando-me com brutalidade e dureza. Perco o ar por instantes…
E quando passa o pior… enxugo o melhor que consigo. Calço umas meias mais grossas nos pés gelados. Puxo as cobertas da cama até ao pescoço. E volto à Serra com o Jacinto e o Zé Fernandes. E sereno, nesse passeio, enquanto o corpo entra no torpor do sono…

“A Cidade e as Serras”, de Eça de Queirós

Queda e muda

John Singer Sargent, Nonchaloir (Repose), American, 1856 - 1925, 1911, oil on canvas, Gift of Curt H. Reisinger

Enquanto mordo o lábio recordo com ironia o último romance que li. Pensava na altura como apenas nos livros as tempestades da natureza adivinham os desastres que estão para vir… E tento pensar cientificamente – o tempo provoca a tristeza ou provoquei a tristeza num dia assim?
Deixo-me estar queda e muda pela casa. Re-olho o relógio. Re-verifico o telemóvel. Suspiro. Volto a morder o lábio. Entrelaço uma mecha de cabelo no dedo. Ajeito a roupa, sem querer vestir o pijama, protestando contra a ideia de que o dia terminou assim. Embora seja ridículo continuar a fingir…
Agito-me e volto a ajeitar as malas que afinal não precisava de ter feito com roupa e comida. Com planos alterados, fico meio perdida… Porque a esta hora devia estar noutro sítio… E deixo-me estar queda e muda. Re-olho o relógio, o telemóvel, o suspiro, mordo o lábio, despenteio o cabelo, a roupa bonita… E fico queda e muda, agitada por dentro. De felicidade suspensa, inerte.
Mas pronta na pista de corrida, à espera do disparo, da bandeira, de um sinal.
Olho a lista das compras que acabei por não fazer e a receita que ia experimentar, e dou por mim a roer as unhas nervosa. O que é que posso fazer? Sem ser estar só queda… e muda.

(Re-olho o relógio, o telemóvel, o suspiro, mordo o lábio, despenteio o cabelo…)

[Romance: Rebeca – Daphne du Maurier]

Arrebatamento

As folhas vão mudando e o verde torna-se amarelo, laranja, vermelho, castanho. Já? Outra vez?!
Damos conta que é Outono porque está um nevoeiro medonho, por todo o lado. Em breve estaremos todos adoentados com estas drásticas mudanças climáticas… mas sobre isso vamos fazendo muito pouco.

No autocarro três mães discutem parentalidade.
Falam tão à vontade, tão sério, interessadas e preocupadas, que só muito mais tarde reparo que uma delas é acompanhada pelo mais novo, alheio a tudo menos ao telemóvel.
Penso na minha casa, nas nossas mães… No pai.

Na mudança da linha do metro, um pai pede ao seu pequeno “corre!”, e ele corre para acompanhar as compridas pernas do pai.
Penso na minha casa, nas pequenas e nas suas fragilidades.
Lembro aquela colecção do brilhante e fascinante, das pequeninas coisas que me ensinou… E agradeço a Deus o facto de estas não terem surgido como se fossem novidade. Calculo que seja sinal de que aprendi o essencial.

Dentro de um carrinho um bebé brinca com a mãe. O gesto, para já, é simplesmente o abanar da cabeça, que a mãe repete. Mais tarde, querida mãe, será um não, um sim, um talvez. Na próxima estação serão uns passinhos, daqui a três já serão palavras. Repara, senhora mãe, hoje dá-te alegrias mas… um dia serão preocupações. E se trabalhares bem, por cada mágoa terás um “desculpa” e mil beijos! Só que… ainda falta um tempo, como aquele que as folhas levam a mudar de cor…
O tempo de um arrebatamento.

“Taizé, Um sentido para a vida” – Olivier Clément

“O jovem actual tem uma cabeça que funciona a grande velocidade, seja sobre ideias e sistemas, seja simplesmente sobre os desejos e aspirações que lhe fornecem os meios de comunicação social. Mas os espaços do coração são espaços por cultivar, e é muito importante pacificar as inteligências para que talvez, então, elas possam escutar a oração.”

“Agradeço a sua carta.”

Ursula Doyle – “Cartas de Amor de Grandes Homens”

29/11/1920
Ofelinha:
Agradeço a sua carta. Ela trouxe-me pena e alívio ao mesmo tempo. Pena, porque estas coisas fazem sempre pena; alívio, porque, na verdade, a única solução é essa – o não prolongarmos mais uma situação que não tem já a justificação do amor, nem de uma parte nem de outra. Da minha, ao menos, fica uma estima profunda, uma amizade inalterável. Não me nega a Ofelinha outro tanto, não é verdade?
Nem a Ofelinha, nem eu, temos culpa nisso. Só o Destino terá culpa, se o Destino fosse gente, a quem culpas se atribuíssem.
O Tempo, que envelhece as faces e os cabelos, envelhece também, mas mais depressa ainda, as afeições violentas. A maioria da gente, porque é estúpida, consegue não dar por isso, e julga que ainda ama porque contraiu o hábito de se sentir a amar. (…)
Estas coisas fazem sofrer, mas o sofrimento passa. Se a vida, que é tudo, passa por fim, como não hão de passar o amor e a dor, e todas as mais coisas, que não são mais que partes da vida?
(…)
Quanto a mim…
O amor passou. Mas conservo-lhe uma afeição inalterável, e não esquecerei nunca – nunca, creia (…).
Eu preferia (…) conservar as suas cartinhas como memória viva de um passado morto, como todos os passados (…).
Peço que não faça como a gente vulgar, que é sempre reles; que não me volte a cara quando passe por si, nem tenha de mim uma recordação em que entre o rancor. Fiquemos, um perante o outro, como dois conhecidos desde a infância, que se amaram um pouco quando meninos, e, embora na vida adulta sigam outras afeições e outros caminhos, conservam sempre, num escaninho da alma, a memória profunda do seu amor antigo e inútil. (…)
Fernando [Pessoa]

– – –

Para a condessa Ewelina Hanska
Oh como gostaria de passar metade do dia ajoelhado aos teus pés com a cabeça no teu regaço, sonhando belos sonhos, contando-te os meus pensamentos com langor, em enlevo, por vezes em silêncio, mas beijando o teu robe!…
(…)
Se a felicidade para uma mulher é saber-se a eleita de um coração, só ela, preenchendo-o por completo, segura de brilhar na inteligência de um homem como a sua luz, segura de ser o seu sangue, animando cada batida do coração, vivendo nos seus pensamentos como a substância mesma desse pensamento, e tendo a certeza de que é assim e assim será sempre.
Honoré de Balzac

– – –

Para Adèle Foucher, Janeiro de 1820
(…)
O que é que interessa, desde que não magoe a sua felicidade? Sim, se ela não pode amar-me, só a mim tenho de culpar. O meu dever é estar sempre próximo dela, rodear a sua existência com a minha, servir como uma barreira contra todos os perigos, oferecer-lhe a minha cabeça como apoio, colocar-me entre ela e todas as mágoas, sem reclamar nenhum prémio, sem esperar nenhuma recompensa. (…) Porque estou pronto a sacrificar tudo por ela, deve-me ela alguma gratidão? É culpa dela que eu a ame? Deve ela, bem vistas as coisas, sentir-se constrangida a amar-me? Não! ela pode brincar com a minha devoção, pagar os meus serviços com ódio, e repelir a minha idolatria com desprezo, sem que eu tenha o direito de me queixar daquele anjo (…). E tivesse um dos meus dias sido marcado por algum sacríficio feito por ela, nem assim haveria eu de, no dia da minha morte, ter resgatado coisa alguma da dívida infinita que a minha existência lhe deve!
(…)
Victor Hugo

Mau (início) de semana

Ao fim de dois dias, o cenário para a semana é desanimador.
Dói-me a barriga, parti uma unha, tive um acidente de carro que envolveu uma bicicleta (mas cujo ciclista se encontra bem), uma amizade a ir à viola, uma mãe que me acusa de negligência familiar, poucas refeições dignas desse nome por falta de tempo, o meu quarto num estado igual ou pior do início do Verão (e eu sem saber por onde começar), dói-me a barriga e está frio.
O consolo de uma chávena de chá e de um bolo xadrez passou depressa…
Procuro conforto em tudo o que tenho à mão arrastando para a cama uma dezena romana, o telemóvel, o mp3, o computador, e o “Hades”. À minha espera estava uma almofada grande que quase me abraça, assim como a mantinha azul que fui buscar ao armário esta tarde.
Mas não acho posição… Estou toda dorida, sem saber se é da aula de dança (momento alto da semana até agora), se dos nervos ou se estarei a ficar doente. Também pode ser apenas falta de sono, por ter dormido quase até ao meio-dia…

A porta abre-se e especulo um ralhete pelas horas, pela luz acessa, pelo martelar das teclas. Nada. A matriarca sofre de insónias e vem apenas espreitar. Resolve ler o livro que lhe emprestei, a fim de que o sono venha mais depressa.
Termina assim o meu lamento. Cessa a minha auto-comiseração.
Posiciono-me e “positivo-me”: a semana não chegou a meio, mas apesar do que tenho para resolver tudo pode ficar bem. Pego num bocadinho de fé, junto-lhe boa vontade e concluo que com esforço consigo resolver tudo da melhor maneira. Mudo assim a minha oração. Deixa de ser (como diria um amigo) “Caramba, pá!” para “Faça-se como Queiras, que cá estarei para lutar pelo melhor”.
Medito e descentralizo-me de mim própria: pensando nos outros noto como os meus problemas não passam de meras arrelias. Lembro as dores do ciclista, as mágoas que provoquei, a paralesia que mal deixa a velhinha mexer-se, a falta de atenção a cada um dos membros da minha família… Ainda mais muda a minha oração. Quero ser instrumento cheio de luz e amor em vez de um furacão com más energias.
Digo aos anjos e aos arcanjos que quero estar do seu lado e ajudar no imenso trabalho que têm. Ofereço as minhas dores e tormentos, eu que estou deitada numa cama quente e confortável, de estomâgo cheio e com roupa lavada. Eu que estudo e trabalho, que danço, rio e passeio. E que ainda hoje recebi um vestido novo, o mais lindo do meu armário.

Eu, que sou tão abençoada. Aleluia!, voltou o bom humor.

Designação de categoria: Leitoras

“Tínhamos o nosso próprio mundo a que mais ninguém tinha acesso.”
“Halo”, Alexandra Adornetto

22H45
Momento precioso (e raro, pois estou deitada e de pijama):
A pequenina lê “Diário de um Vampiro Banana 2”. Eu estou absorta em “Halo”. Sou obrigada a deixar Xavier Woods (a minha mais recente paixão) por uns momentos…
– Oh Vera, eu não percebo… Existe um concílio de vampiros, mas a família dele é única… Como é que funciona? É um concílio familiar?
Não tenho resposta.
– Ai, estou cansada… Mas olha estou a ler tão bem que em vez de ler duas páginas li cinco!! Mas já chega…
Olho para o livro que tenho nas mãos: é o 2ºdia, vou na pág. 225, com perspectivas de acabar em breve as 166 que faltam.

Recordo outro quarto, outra casa, outra irmã, estas mesmas camas. “Lê em voz alta, Vera…”. E eu começava, fosse o Harry Potter, o Clube das Chaves ou qualquer outro, com grande entusiasmo. “Vera, estás a fazê-lo outra vez!”, “O quê?” dizia distraída, forçada a sair do livro… “Começas a ler alto, depois cada vez mais baixo, a seguir aceleras, por fim calas-te, mas fazes sons e ris sozinha!”.
Na verdade, ainda hoje o faço…
Com a idade desenvolvi a capacidade de ler e andar na rua, e é por isso que adoro andar de transportes. No mp3 tocam músicas de amores antigos de livros que ganham pó. A SM traduziu de maneira perfeita:
“… Foi o facto de adorar ler, de ter vivido mil aventuras – de ter sido mil heroínas, e me ter apaixonado mil vezes.
Volto a correr para Xavier Woods e para Gabriel, sabendo que estou apaixonada.. Já pouco importa a música ou a falta de sono da pequena. Ardo em ânsia para estar com eles, sem escolher um, e sabendo que tenho mais dois na secretária. E agradeço ao Senhor os dons que me concedeu. Oxalá um dia eu possa retribuir tudo o que de bom sinto… Oxalá Gabriel esteja por aí, e posso eu perceber o meu caminho.
Até lá, fujo para todos os mundos que encontro nas palavras de um bom livro, na melodia de uma canção… Sem me esquecer de ser feliz.

Tempo.

Esse tempo que é tão (in)linear, tão falso, tão corrupto!

Esse tempo que nos trama com chuva, com calor, com falta de tempo.

E todas essas somas de horas que passamos no trânsito, na escola, no trabalho, a estudar, ou na praia.
E sabemos que existem outros que não se maçam a perder tempo a pensar no tempo.
Antes vivem-no, sem relógio além do Pai Sol e da Mãe Lua, sem compromissos além do ter fome, ter sede, ter sono, ter campos para tratar e gado para cuidar.
Julga-se que são infelizes porque nada sabem da vida.
Que sei eu de cabeça enfiada em livros e artigos, com um curso numa área e a trabalhar noutra? Sei mais do que se apenas me dedicasse a um tema.
E seria o meu tempo mais produtivo? Não sei…

Todo esse tempo gasto a ver fotografias tão lindas tão belas, pensando no tempo que foi gasto para atingir aquele nível de perfeição e ao qual o artista ambiciona ultrapassar-se.
Mais aquele tempo gasto nas palavras, nas páginas, nos livros, nos blog’s, meditando de quando tempo seria necessário para viver disso, quanto tempo gasto em imaginação e criatividade.

Fora o tempo que não gastamos a dizer gosto de ti, vamos beber café, que lindo jardim…
O tempo que poupamos em ir de carro para a praia, mas que gastamos a decidir quem são os 4 felizes contemplados que nos acompanham, que gastamos no stress do trânsito no qual se passa 3 horas para aproveitar 2 horas de sol.

E as 4 horas de trabalho em que se podia aproveitar para estudar porque não há muito mais para fazer, mas passam a correr, num ápice ou num instante, e o que se fez?
Meditou-se no tempo e no cansaço dessa meditação.

Enfim… Quem me dera ter estar no tempo de dormir!

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“O diário de Ma Yan”

[Diário escrito nos anos de 2000 e 2001]

“Terça-feira, 10 de Outubro.
Hoje, aula de Música. Mas a professora faltou. Faço, portanto, exercícios de escrita. O chefe de turma, MaFulu, um aluno muito alto e muito mau para todos os camaradas, grita-me:
– Ma Yan, não podes fazer esses exercícios, estamos numa aula de Música!
Replico:
– Se os outros podem, por que só me impedes a mim?
Ele começa a gritar:
– Estou a falar contigo, não me importo com os outros!
Sinto raiva no coração. Quando for crescida, irei para a universidade e serei polícia. E prometo a mim própria que o punirei sem hesitar.”

“Segunda-feira, 10 de Setembro.
(…)
O que disse ao motorista não é verdade. O professor diz-nos que os estudantes não devem mentir, que devem ser honestos. Mas eu não tinha outra opção. Pedi dinheiro ao meu pai, ele respondeu-me que estamos sem dinheiro: poderei ignorar as dificuldades com que a nossa família se debate? Não lhe pedi mais nada. Se tivesse voltado a pedir, ele ter-se-ia zangado.
Se contasse toda esta história ao motorista, ele teria troçado de mim, e sobretudo do meu pai. Decertp teria pensado: «Que pai! Um inútil! Nem sequer pode pagar o preço do transporte da filha!»
O meu pai faz o melhor que pode. Não quero que me digam mal dele. Foi por isso que menti.”

“Terça-feira, 18 de Setembro.
(…) vamos buscar a nossa refeição, mas já não há nada. Alguns professores estão sentados na cozinha. Propositadamente, reclamo, em voz alta:
– Os nossos ventres clamam por comida! Apressámo-nos a vir buscar a nossa refeição, e não encontrámos nada! Nós, os alunos, sonhamos de manhã à noite com estas duas tigelas de arroz. Em que estado querem que terminemos o dia? Se houvesse pão, ainda nos contentaríamos, mas não há. Além disso, está um dia de chuva! O ânimo dos alunos está fraco, sobretudo de bariga vazia!
(…) Mas também reflicto sobre outro ponto: para ser boaaluna, não terei igualmente de suportar a dor?”

“Quinta-feira, 20 de Setembro.
(…)
Ele, então, pergunta-me se já comi.
– Com certeza…
Mas ele compreende que não é verdade:
– Ainda não comeste, porque tens a bocaseca. As pessoas que comeram têm os lábios húmidos.
(…)
Não é possível descrever o sentimento de ter FOME.”

“Segunda-feira, 29 de Outubro.
(…) Algumas raparigas mudam de roupa quando vêm para a escola, enquanto eu só tenho uma muda, umas calças e uma blusa branca que tenho de lavar aos sábados, em casa, paraa voltar a vestir a segunda-feira.”

“Terça-feira, 30 de Outubro.
(…) Sabem o que é ter fome? É uma dor insuportável.
Pergunto a mim mesma quando deixarei de sofrer de fome na escola…”

In “O Diário de Ma Yan – A vida quotidiana de uma criança chinesa”

Gota, a minha gota…

     “Porquê? Porque um belo dia, um mundo puramente predatório vai acabar por consumir-se a si próprio. Sim, o diabo vai começar por apoderar-se do que está mais atrás até chegar ao primeiro. Num indivíduo, o egoísmo desfeia a alma; para a espécie humana, egoísmo significa extinção.
Será esta a entropia inscrita na nossa natureza?
Se nós acreditarmos firmemente que a humanidade pode transcender os dentes e as garras, se acreditarmos que as diversas raças e credos podem partilhar este mundo tão pacificamente como aqueles orfãos partilham da mesma árvore-de-cera, se acreditarmos que os líderes têm de ser homens justos, a violência deve ser dominada, o poder responsabilizado e as riquezas da Terra e dos seus oceanos partilhadas equitativamente, esse mundo há de sobreviver. Mas não me iludo: esse é o mundo mais difícil de tornar real. Progressos difíceis que levaram gerações a alcançar podem perder-se por um traço de pena de um presidente míope ou pela espada de um general presunçoso.
Uma vida gasta a moldar o mundo que eu quero que o meu filho venha a herdar, e não o que eu receio que ele venha a herdar, aí está uma vida digna de ser vivida. Quando voltar a São Francisco, dedicar-me-ei à causa abolicionista, porque devo a vida a um escravo que se libertou a si próprio e porque tenho de começar por alguma ponta.
Imagino a reacção do meu sogro. «Ah, claro! Belos sentimentos, Adam! Mas não me fales a mim de justiça! Vai para o Tennesse montado num burro, ver se convences aqueles campónios brancos dos rednecks de que são apenas negros pintados de branco e que os seus negros são brancos pintados de preto! Vai para a Europa e diz-lhes que os direitos dos escravos deles são tão inalienáveis como os da rainha da Bélgica! Vais ficar rouco de tanto gritar! Vão cuspir-te em cima, dar-te tiros, linchar-te, medalhar-te para te calar, desdenhado pela plebe! Crucificado! Pobre sonhador ingénuo, Adam! Aquele que quiser lutar contra a hidra de muitas cabeças que é a natureza humana, tem de pagar caro e a família tem de pagar também! E só com o teu último suspiro é que hás de perceber que a tua vida não é mais que uma gota num oceano sem limites!»
E, contudo, o que é o oceano senão uma profusão de gotas?”

David Mitchell – Diário da Travessia do Pacífico de Adam Ewing (Parte II), in “Atlas das Nuvens”